Culpar só o Governo não soma: é Governo, família e auto-reflexão

O problema do crack em Alagoas é visto como a conseqüência de um sistema público sucateado. Porém, deve-se somar a esta conta uma sociedade desestruturada e a perda do que convencionou chamar “Moral”.

Ana Célia Rocha
           
A entrada do crack em Alagoas foi seguida por uma epidemia de violência que tomou o Estado. Desde então, é fácil clamar por justiça quando se podem apontar culpados: o usuário, que comete crimes para manter o seu vício, aquém de qualquer senso de moralidade, justiça. Humanidade. No entanto, esquece-se, justamente, a humanidade dos indivíduos envolvidos: são pessoas, sem raça, idade, ou nome: chamados “viciados” apenas, como se não tivessem família ou histórias de vida.
Existe uma forte evidência de que o crescimento das ocorrências de homicídios em Alagoas possa ser explicado, em grande medida, pela intensificação dos conflitos relacionados ao tráfico de drogas. O intuito desta matéria, entretanto, não é relacionar este fato, mais uma vez, à falta de políticas públicas nas áreas mais carentes e críticas, à desinformação e à falta de estruturação das ações policiais que, sim, permitem a crescente onda de ação de delinqüentes no Estado. Buscamos, enfim, reconhecer um fato que, se parece, há muito foi esquecido pela sociedade alagoana: os envolvidos com o tráfico são, além de delinqüentes, miseráveis; são indivíduos.
Nos registros de prisões do Centro de Operações da Defesa Social por consumo ou tráfico de drogas, consta que o Jacintinho é o bairro mais violento de Maceió, levando-se em consideração o número de ocorrências envolvendo o tráfico de drogas, além de roubos e pequenos furtos.
Segundo o Serviço de Inteligência da Polícia Militar do Estado, além do Jacintinho, o Vergel do Lago, o Tabuleiro dos Martins e o Benedito Bentes lideram o ranking da violência em Maceió. Como se não bastasse o rótulo da capital que mais oferece mais risco para os jovens, os registros policiais nestas localidades são tantos que diversas vezes surgem referências a estas como sendo a Faixa de Gaza alagoana.
Todos estes bairros têm fatores sociais em comum. Estão localizados na periferia da capital alagoana, a condição de vida da maioria da população é precária, o grau de instrução é baixo, e o desemprego está presente. Todos estes pontos são esquecidos ao se discutir a questão da droga no Estado. Se um problema-chave é levantado, ele prontamente leva em consideração a conseqüência: violência.
Na realidade, a violência acontece como forma de manter o mundo do crime. O viciado é um criminoso em potencial. “A droga, transmite uma sensação eufórica, ao mesmo tempo irritada, incita, dessensibiliza e descontrola a mente; provocando o comportamento violento e delitivo”, afirma Noélia Costa, presidente do Fórum Permanente de Combate às Drogas, que tem como lema a máxima “quem se informa não se droga”.
Costa afirma contundentemente que as drogas estão cada vez mais presentes em todas as camadas da sociedade, “atingindo grandes proporções. Hoje, 90% dos casos de criminalidade em nosso Estado estão relacionados às drogas”, pontua.
Na maioria das vezes, as vítimas de homicídio são jovens do sexo masculino na faixa etária de 18 a 24 anos de idade, que se envolvem com o uso de drogas e, com o passar do tempo, não conseguem saldar suas dívidas com os traficantes. Estes, sem piedade, usando de suas próprias leis, condenam o devedor à “pena de morte”.
Muitas vezes, segundo relatos, a sentença de morte é cumprida, ainda que as dívidas sejam saldadas após ameaças, pois o traficante quer manter o seu “respeito” perante a comunidade onde domina. Os dados da Polícia apontam que, entre 1997 e 2007, a taxa de homicídios entre jovens quadruplicou.
De fato, ao analisar-se o perfil dos presos no sistema prisional alagoano, pode-se observar a predominância de pessoas do sexo masculino, com idades entre 18 e 29 anos, sendo, a grande maioria destes, condenados por crimes de homicídio; seguido por tráfico de drogas.

A CARREIRA DO CRIME

O senso comum que prevalecente na sociedade alagoana, concebe a violência como atributo de uma atividade criminosa organizada. O narcotráfico atuante nas favelas é tratado como uma organização estruturalmente fechada, com rigidez de papéis e impossibilidade de desligamento. As situações de conflito, geradoras de violência e homicídio são explicadas, em última instância, por essa rigidez. Os achados da presente reportagem, entretanto, apontam para outra direção.
Não parece que necessariamente os conflitos estão relacionados a uma estrutura rígida, mas pelo contrário: no caso do crack, a violência está ligada à estrutura aberta de redes de tráfico. Estas podem ser qualificadas como organizações criminosas, sem dúvida alguma, mas que, em Alagoas, se estruturam como redes de relacionamentos, o que é bastante singular.


Na porta do presídio, o coração de mãe ainda sente que o filho é um "menino bom"

A rede criminosa que comercializa o crack pode ser categorizada como uma grande rede de bocas, que constituem suas conexões em rede a partir de dois formatos: uma rede de comercialização hierarquicamente centralizada, uma verdadeira “firmareconhecida”, como pertencente a um patrão; ou uma rede de conexão iniciada por um grupo de indivíduos, ou um único indivíduo, que assume a autoridade da revenda em um local, um ponto, mas não necessariamente apresenta uma estrutura hierárquica.
O promotor de Justiça Flávio Gomes da Costa afirmou a esta reportagem que um dos movimentos mais dinamizadores da rede alagoana de bocas é o das conexões dos moradores locais que querem se integrar à comercialização. Estes podem estar conectados na condição de vapores ou guerreiros (vendedores), mulas (que acionam os vendedores e entregam a droga), correria (deslocamento entre bocas), olheiros, fogueteiros (acionadores da segurança), faxineiros ou ratos (cobradores e matadores).
Em geral, estas conexões são compostas por jovens a partir dos 12 anos.  Entretanto, conforme apurado por esta reportagem através de relatos, é freqüente a presença de crianças abaixo dessa idade, já viciadas, que se conectam com o objetivo de obter um trabalho e renda, benefício de acesso à droga e integração simbólica.

O PREÇO DA DROGA, O DEPENDENTE E O ALGOZ

Em Alagoas, ainda que a cocaína e maconha também sejam vendidas, esses produtos foram apresentados como tendo, nesse momento, menor peso comercial.
De acordo com um ex-traficante entrevistado – que falou abertamente a esta reportagem após certificar-se que não seria identificado, “Maconha todo mundo tem e todo mundo ganha. O Crack é ouro!”. Segundo ele, que afirma estar desligado do mundo do crime há anos, “eles não se interessam em vender maconha que é barato, interessa vender o crack. Porque o crack é uma droga pequena, de consumo muito rápido, a pessoa vai voltar toda hora, é muito viciante”, afirmou.
Os relatos apurados demonstram que o crack potencializa as situações de endividamento por uma questão relacionada ao seu principal efeito farmacológico: compulsão ao uso. Segundo o ex-traficante, “se você pega 10 reais de maconha, você faz 6, 7 cigarro, você usa de manhã, à noite e depois vai... por isso que hoje em dia os caras nem fazem muita questão de maconha, eles vendem mais crack, que dá mais dinheiro, e é uma droga que controla mais o ser humano”.
Outra variável de violência relacionada ao crack são os conflitos originados da pulverização da droga: a incorporação do usuário à rede de comercialização para o sustento do uso. Na cadeia de repasse, o derrame torna-se não somente um problema para o usuário, mas para o vendedor que repassou a droga para o usuário e que posteriormente tem que acertar contas com a sua Boca. Os conflitos se estendem na medida em que a rede de conexões se amplia e há movimento dos papéis de seus integrantes – um passa a dever a outro; que deve prestar contas a um terceiro; que se reporta à boca.
Segundo a Polícia militar de Alagoas, os traficantes, em geral, são pessoas organizadas, criativas. Geralmente tem alto poder aquisitivo e fazem parte da classe média ou alta, cometem outros delitos – principalmente seqüestros e roubos para angariar recurso para a compra de drogas, e não consomem o produto. Em sua grande maioria, são pessoas do sexo masculino, que tiveram oportunidade de estudo, e tem idade entre 16 e 40 anos.
Os usuários, por outro lado, são pessoas que encontram nas drogas um refúgio para suas angústias. Estão presentes em todas as classes sociais, ao contrário do que se afirma. Estes cometem pequenos delitos, principalmente furtos para manter seu vício, e andam com pequenas quantidades de drogas. Em relação ao sexo, percebe-se que a quantidade de mulheres é crescente, porém a maioria é homem, que não tiveram a oportunidade de estudo e tem idade entre 12 e 25 anos.

DEPENDENTES E CO-DEPENDENTES: FAMÍLIAS DESFEITAS

“Uso, e vendo. Mas não sou traficante”. Esta foi uma das sentenças mais repetidas por I.R.S., 17 anos. O jovem, que está à caminho da segunda clínica de reabilitação, afirma que apenas vende para manter o vício, mas acredita não estar ligado à rede de crimes. Ao lado da mãe, com a bíblia na mão, o usuário afirma que seu desejo pela reabilitação surgiu ao perceber que “não era mais um ser humano”. Foi com o apoio da mãe que o rapaz procurou ajuda. Segurando as mãos do filho, J.R.S. afirma crer na recuperação do rapaz. Porém, o discurso se modifica em uma conversa sem a presença do mesmo.

O desespero de uma mãe na porta do preísidio Cyridião Durval: mãos vazias e um coração cheio de esperanças

Em conversa reservada, a mãe afirma: “não há mais esperança. Se ele morrer, será um alívio para mim”. Por um momento, esta afirmação soa como crueldade. Porém, ao ouvir a trajetória de I.R.S., o desespero da mão soa compreensível. O filho é usuário desde os 12 anos de idade; aos 14, ela descobriu. Desde então, são traficantes adentrando sua residência, a polícia presente em sua porta; o próprio filho batendo em seu rosto. Para a mãe, ela é uma co-dependente do vício do jovem, sem saber o que fazer de sua vida, tanto quanto o próprio usuário. Ela afirma, ainda, que sabe que ele a manipula. “Ele é um artista”, afirma.
Ao ser entrevistado longe dos olhos da mãe, ficou claro o dom “artístico” de I.R.S. – dom este que parece inerente à maioria dos usuários. Na ocasião, o jovem afirmou ser usuário apenas porque a mãe lhe dá dinheiro para manter o vício: “eu já fico na expectativa de ela chegar em casa e me dar o dinheiro pra ir fumar. Se não fosse isso, eu não fumaria. Eu não sou criminoso, jamais cometeria crime algum. Ela deixa até eu fumar em casa”.
Posto em frente à mãe, a verdade aparece. I.R.S. vendeu todos os eletrodomésticos que havia em sua casa. Assaltou e já cometeu tentativas de homicídio, sendo livrado de penas duras por ser menor de idade. A mãe afirma que, no desespero, passou a bancar o vício do filho; na esperança de que, dessa maneira, ele se afastaria do crime.

O FIM, OU O MEIO

Presídio Cirydião Durval. Dia de visitas. Às quatro da manhã já é possível ver filas formando-se á porta do local, feita por mulheres, em sua maioria. Tanta espera é para conseguir fichas, que servirão para a visitação de filhos, maridos, entes queridos.
Uma conversa franca com algumas delas demonstra o que parece improvável: boa parte acredita que está ali por uma injustiça. “Ele é uma boa pessoa, não faria mal a ninguém”, é uma afirmação constante. É notável uma dissociação entre o tráfico e uma facção criminosa. Segundo relatos, existe uma clara diferenciação entre o traficante e o verdadeiro criminoso – estas classificações variando de acordo com o crime cometido pelo próprio ente.
Segundo as entrevistadas, o tráfico de drogas não é crime, e sim um trabalho. “Meu filho nunca obrigou ninguém a se drogar. Ele vendia a droga, comprava quem queria. Era o sustento dele.”, afirmava veementemente uma das mães. Que fique claro: não por maldade. Ao ser perguntada se ela não acredita se o tráfico tem ligações com outras formas de crimes, geradores de violência, muitas delas recaíam na auto-negação, na crença na bondade humana, por muitas vezes até ingênua; limitavam-se a afirmar: “meu filho jamais faria mal a alguém”.


Conhecido por ser um dos maiores traficantes do Estado de Alagoas: preso, de mãos vazias, afirma ser apenas um "pescador"

Por diversas vezes, o próprio traficante acredita ter uma forma de trabalho honesta. De acordo com Leandro Correia, fiscal das equipes que supervisionam reeducandos no Presídio Cirydião Durval, muitos desses indivíduos acreditam, de fato, não terem cometido crime algum: “eles sofrem uma verdadeira lavagem cerebral. Se sentem até injustiçados, pois não tem o senso do que é errado. Nesse contexto, vale a máxima do ‘compra quem quer’. Eles acreditam que oferecem um serviço, o fazem de maneira eficiente, e não deviam ser condenados por isso.”
Para Correia, este é um reflexo de uma sociedade com valores deturpados, onde não mais se sabe o limite entre o que é errado e o que se convencionou chamar “moral”. “Este aqui, é o ‘fim’ de muitos meninos chamados de ‘bons’ aqui na porta”, pontuou por fim.
A entrevista com um conhecido traficante local, preso, dá pistas de que, muitas vezes, demonstrar crença na inocência não é uma questão de ingenuidade. O homem, que se certificou, antes de falar, que não seria identificado nesta matéria, afirmou veementemente que estava ali por engano.
“Meu irmão era traficante famoso na favela em que eu morava. A fama dele fez meu mal. A polícia desconfiou de mim por conta da minha ligação com ele. Não sou traficante, nem era usuário”, afirmou o preso, acusado de ser um dos maiores traficantes de entorpecentes do Estado de Alagoas. Ele afirmou, ainda, que usou crack pela primeira vez dentro dos portões do presídio, onde o contato com a droga é inevitável. “Eu comecei com esse mal dentro do Baldomero Cavalcanti, onde fui preso pela primeira vez. No momento, aqui no Cirydião, não uso nada. Quero parar”, afirmou com aparente convicção.
Entretanto, relatos dão conta de que o homem, recém-chegado ao presídio, encontra-se em processo de triagem, ou seja, impossibilitado de ter acesso às drogas. Porém, o reeducando está tentando constantemente negociar o acesso ao crack. Além disto, o homem, que afirma ser inocente, é conhecido por ter controlado uma das maiores redes de bocas desarticuladas em Alagoas, com lucro obtido de cerca de R$ 8 mil, por semana. “Sou apenas um pescador”, afirma.

O DITADO LEVADO AO PÉ DA LETRA: O RELATO DE UMA CIDADÃ

“Uma pessoa que comete este tipo de crime, merece morrer”.

"Matar é comigo mesmo, defendo as pessoas de bem."



            Quantas vezes se ouve este dizer diante de um crime bárbaro? No presídio Cirydião Durval, fiquei frente à frente com um homem que levou este ditado ao pé da letra. 



 “Só mato quem mexe comigo, quem não tem respeito com o próximo”. Esta declaração é de um reeducando, preso por homicídio. “11 fora da cadeia e 22 depois de preso”, afirma com bastante naturalidade. Apesar de assumir ser usuário de drogas, o homem, de 40 anos, há vinte preso, diz matar sempre “de boa”, quando não está drogado, e apenas a “quem faz por merecer”.
            Estar frente a frente com esta mente criminosa não é fácil. Ele conta, sem meias palavras, detalhes de cada crime que cometeu: como, onde, por qual razão. Lembra de cada um deles, afirma, inclusive, o número de vezes em que esfaqueou cada um, enquanto gritava os motivos pelos quais cometia os delitos. “Não gosto de quem não tem respeito. Dentro da cadeia, matei gente que desrespeitou a mim, às regras da convivência dos companheiros e à polícia”.
De fato, o preso é considerado um dos mais bem comportados da cadeia, e, segundo o próprio, “sempre foi tranqüilo, durante toda a infância. Só me envolvi com drogas depois que entrei na cadeia. Mas nada do que fiz foi por conta dela. Não quero correr o risco de esquecer algo que fiz, de me perguntarem se eu matei fulano e eu ter que dizer que não lembro ou não sei. Mato consciente, pra fazer bem feito, sem deixar chance de deixar vivos”.
Indivíduos como este são verdadeiros retratos de crianças que crescem e se tornam adultos com o discernimento entre o certo e o errado equivocados. São retratos de uma sociedade, onde sempre que uma tragédia invade os lares através dos meios de comunicação, especialmente, em notícias que reportam latrocínios, estupros, abuso sexual contra crianças, tortura policial, brigas mortíferas no trânsito, dentre outras modalidades do malvado portfólio humano, toda a gente se apoquenta. Como é que pode tanta violência gratuita?
São os rostos exibidos na TV, como se fossem seres de outro mundo, quando, na verdade, não passam do próprio reflexo da sociedade no espelho. Ali na tela da TV, é a própria sociedade, homens e mulheres, crianças que cresceram arruinadas pela fome, pela falta de afeto, pelo medo, pela falta de livros e escola, pelo frio das ruas, pelos efeitos bioquímicos de drogas, pela doença mental não identificada e não tratada pelos órgãos públicos, pelo abandono social, pelo desleixo das autoridades, e pela falta de tempo da “sociedade organizada”.